Falando de Marketing

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terça-feira, novembro 07, 2006

Cliente: desonesto até que prove o contrário

Um dos problemas que impede o crescimento do comércio e dos serviços no Brasil é a má fé. Não a má fé do consumidor brasileiro. A má fé das empresas que vendem produtos e prestam serviços. Para elas, todo cliente é desonesto até que prove o contrário.

Em toda minha vida de cliente e consumidora uma certeza vem crescendo cada vez mais: as empresas trabalham sempre a partir do pressuposto que eu quero passar a perna nelas. Primeiro, exigem dados completos e comprovados sobre minha pessoa, meu histórico, meus antepassados, minha vida profissional... Até para usar uma área exclusiva (e gratuita) de algum site, preciso fornecer meu CPF!

Um banco que diz entender meus costumes não importa onde eu esteja, afirmou que eu poderia fazer um cartão de crédito gratuito através da Internet. Depois de preencher um formulário com inúmeros dados pessoais, não recebi meu cartão. Ninguém me avisou, ninguém falou nada. Simplesmente nunca recebi. Liguei lá para saber. Apenas me disseram que, se eu quisesse, teria de ir até uma agência comprovar meus dados. Por quê? Porque eles não confiaram em mim. Não acreditaram no que eu falei, nem no que meu empregador falou, nem no que todas as minhas referências falaram sobre mim. Para o super banco dono da verdade, estávamos todos mentindo. Era um plano secreto, um complô, todos nós nos unimos para que eu pudesse realizar meu plano maquiavélico de conseguir um cartão de crédito sem anuidade! Nossa, nós somos geniais. Vivemos no limiar do perigo.

Atire a primeira pedra quem nunca se sentiu tratado como um criminoso, um potencial inadimplente. Nós temos que confiar 100% nas empresas que contratamos para nos prover serviços bancários, de telefonia, de seguros. Mas elas não confiam em ninguém já de antemão. Sumiu dinheiro da sua conta? É bom você conseguir provar com a precisão dos investigadores do C.S.I. que não foi você, senão o banco não fará absolutamente nada para reaver seu dinheiro.

Utilizo um serviço de telefonia fixo que nunca me deu problema e sempre me atendeu muito bem – diferentemente da empresa campeã de reclamações no Procon. Infelizmente, porém, recentemente deparei-me com uma situação que, baseada em meu relacionamento com a empresa, achei que seria resolvida rápida e tranqüilamente. Tratava-se claramente de um equívoco. Recebi uma cobrança de cerca de 75 minutos de ligações para celular realizadas do meu telefone fixo, todas nos horários em que nunca há ninguém em casa. Ligações em horário comercial – quando estamos todos fora de casa, trabalhando – e outras tantas em um sábado que passamos fora, a pelo menos 300 km de distância da nossa casa. Não, ninguém mais tem a chave da minha casa. Não, eu não faço a menor idéia de que números de celular são aqueles que apareceram na minha conta.

Entrei em contato com a prestadora de serviços. Foi-me dito que as ligações foram sim realizadas do meu terminal telefônico e que o sistema daquela empresa é inequívoco, sem contar que suas linhas são ultra protegidas contra “gatos”. Por isso, para eles, a conta estava sendo cobrada corretamente e nenhum valor seria estornado. Nossa! Eu que trabalho em uma empresa de tecnologia até espantei-me com a afirmação de que o sistema da telecom da vila global era incapaz de cometer erros. Eles realmente estão na ponta, no estado da arte. Um sistema que não comete erros... Será que o Bill Gates já ouviu falar disso?

Em seguida, fui bombardeada por afirmações vagas e incoerentes. A companhia afirmava ter um sistema à prova de falhas, mas não podia me enviar um documento afirmando isso por escrito. A atendente dizia que achava bastante improvável que alguém se daria ao trabalho de fazer um “gato” na nossa linha, altamente protegida pela super avançada tecnologia que tal empresa detém, apenas para realizar essas poucas ligações. Por outro lado, ela parecia achar bastante provável que eu quisesse agir de má fé e ligasse para ela dizendo que não gastei o que está – segundo ela – provado no relatório da minha fatura que eu, de fato, gastei. Isto é, na opinião da empresa, ninguém seria capaz de correr o risco de fazer um “gato” em uma linha como a deles, mas eu, com meu instinto criminoso apenas esperando para aflorar, tenho todos os motivos do mundo para ligar para eles pedindo que não cobrem míseros cinqüenta reais a mais na minha conta.

Eu dizia: é impossível que eu tenha realizado essas ligações. Você não percebe no meu histórico que eu jamais realizei essa quantidade de ligações para celular? Você acha que eu perderia meu tempo mentindo para você por causa de uma diferença de R$ 50,00 na minha fatura? Eu jamais atrasei um pagamento em minha vida. Minha conta nunca atingiu esse valor. Eu estou aqui lhe dizendo que não há possibilidade nenhuma de alguém ter utilizado meu telefone nesses dias. Eu posso provar que eu não estava na cidade. E mesmo assim você prefere acreditar que eu estou mentindo?

Sim. Mesmo assim ela preferiu crer que eu estava mentindo. Nessas horas a gente se pergunta de que vale ser honesto a vida inteira...

Situações como essa acontecem todo dia, se não comigo ou com você, com nossos vizinhos e parentes. Isso me faz pensar que deve existir uma quantidade altíssima de clientes mentirosos e inadimplentes no Brasil. Afinal, se não houvesse, por que as empresas teriam essa postura?

Pesquisei e descobri o que já suspeitava. Sabe qual é a média de inadimplência no Brasil? Dois por cento. Isso mesmo. Apenas 2%. Isto é, de cada 100 clientes da GVT, apenas 2 não pagam. De cada 1.000, apenas 20 pessoas. Isso quer dizer que as empresas perdem tempo, gastam dinheiro e destratam 98% de seus clientes por causa de 2% da população. Vou dizer mais uma vez: as empresas preferem tratar praticamente a totalidade de seus clientes como possíveis criminosos, devido ao risco de 2% deles realmente cometerem atos de má fé.

Alguém por favor me explique que medo todo é esse de ser enganado. Nós, consumidores, claramente não temos esse medo, pois somos diariamente enganados pelas promessas de tantas empresas - “Aqui você é sempre especial. Entregamos sempre no prazo. Segurança total nas transações.” – e mesmo assim continuamos comprando.

A pergunta é, será que consumiríamos ainda mais se não fossemos tratados como mentirosos compulsivos? Eu digo que sim. Em países como os Estados Unidos, por exemplo, onde empresas e clientes são maduros e não demonstram medo nas transações comerciais, as taxas de consumo são muito mais altas e o comércio apresenta um alto nível de desenvolvimento.

Aqui, porém, as empresas se parecem com adolescentes imaturos que foram magoados pela primeira vez. Bastou uma de suas namoradinhas mentir para eles e seu mundo caiu. Nunca mais viram as mulheres com os mesmos olhos e jamais as trataram com respeito novamente, sempre achando que elas seriam idênticas àquela garotinha que um dia quebrou seus corações. As empresas fazem o mesmo, mas no lugar da namorada infiel está o cliente desonesto (aquele, dentro dos 2% da população). Basicamente, se na vida pessoal os indivíduos criam barreiras psicológicas para não serem enganados, na vida corporativa, as empresas criam dispositivos de segurança, regras, prazos e multas para ameaçar clientes que possam vir a sonhar em enganar-lhes.

Sei que nossa realidade se difere da de outros países por inúmeras e complexas razões. Mas então, sem tomar como base a experiência de outrem, sugiro duas coisas para superarmos o medo das transações comerciais: análise do comportamento do consumidor e gestão do relacionamento com clientes.

Empresas, analisem o mercado. Estudem o perfil do seu público, os costumes, o jeito do brasileiro. Nós não somos desonestos, não somos malandros, o tal “jeitinho brasileiro” nada tem a ver com desonestidade. Antes de se debruçarem em estudos pela segurança de suas transações e para garantir a entrada das contas a receber, identifiquem até que ponto tantos subterfúgios são realmente necessários. É bom ter um plano de contingência para evitar rombos, claro. Mas não transformem a exceção em regra por falta de informação.

Uma vez li que os maiores inadimplentes estão nas classes econômicas mais altas, não nas mais baixas. Quem diria que o mais rico é um pior pagador do que reles membros do proletariado? Essa é uma prova de que sem pesquisa, sem dados, ficamos no “achismo”. E o “achismo” não é poder.

Assim, somente depois de saber efetivamente qual a faixa real de clientes que podem causar problemas, trabalhem nas maneiras de evitar atividades de má fé investindo nisso tempo e dinheiro de forma proporcional ao risco de elas ocorrerem.

Finalmente, usem seus bancos de dados! As empresas encontram-se atualmente atoladas em dados de seus clientes que não são usados para nada. Todo mundo realiza cadastro e guarda histórico de relacionamento com clientes mas não usa isso, não transforma em informação. Tenho certeza que um bom CRM pode apresentar dados suficientes para gerar uma tabela de probabilidade de atraso no pagamento ou inadimplência por tipo de cliente. Para mostrar que isso é possível, tenho um exemplo da empresa onde atuo. Analisando dados dos clientes, conseguimos identificar características relacionadas aos atrasos no pagamento. Com a abordagem correta sobre as reais causas dos pagamentos atrasados, a empresa reduziu pela metade o tempo médio de atraso no recebimento, dentro de um período de seis meses.

Enfim, com base em informações e não em suposições, as empresas podem superar o medo de serem enganadas, passando a identificar as reais possibilidades de correr riscos com certos clientes e chegando até a solucionar problemas que podem ser confundidos como atos de má fé. Tomando o caminho da informação, as relações comerciais melhoram. E os 184 milhões de brasileiros honestos agradecem.